UM HOMEM NA ESTRADA

“A vida desse homem para sempre estará marcada…”

“Ah, mas você é o ex- da Fulana?” assim termina inúmera das conversas que Roberto Lagarto é citado. Eu sou Roberto Lagarto. Sou falsamente acusado de agredir uma ex-namorada duarante o show do Teu Pai Já Sabe? no 1º Brasília Queer Fest. Sou inocente e digo isto desde a primeira acusação. Este texto é sobre isso.

Se você ainda não entendeu do que eu estou falando, eu sou o personagem deste texto aqui: https://elesnaopassarao.wordpress.com/2014/09/27/4/. Antes de começar gostaria de dizer que não sei nada quanto às outras postagens do blog acima. Não tenho qualquer relação com nenhum dos outros envolvidos. Este texto não tem a intenção de criticar nenhuma forma de organização feminina/ feminista. Acredito, como homem criado por mulheres, e sobrevivente de um lar com violência doméstica, que as mulheres podem, e devem se organizar autonomamente. Que devem combater ao patriarcado, e que casos de violência machista devem ser averiguados. Meu texto é sobre um caso específico e, espero que, isolado. Fui acusado de algo que não fiz.

Meu interesse não é apontar o porquê, nem desenvolver acusações ou apontamentos de dedo. Meu único intuito aqui é registrar, além das conversas informais, o meu lado da história, e de porque sou inocente. Como jovem preto/pardo de periferia não é a primeira vez que o faço. Mas nesse caso em específico será a ultima vez em que falarei sobre o assunto. As datas e contextos são muito importantes para entendermos um pouco melhor as coisas. Demorei quase dois anos pensando nesse caso diariamente, e mesmo assim algumas pontas soltas me parecem irresolúveis.

“Esse é o palco da história que por mim será contada…”

Comecei a namorar com D. uma semana após romper um namoro de pouco mais de 9 meses. Estávamos em meados de Julho de 2010. Eu pouco sabia sobre quem era D. apenas que trocávamos cada vez mais mensagens e tínhamos cada vez mais vontade de nos vermos. Nunca tinha a visto antes, mas tínhamos tanto em comum. Vários amigos em comum, e não demorou para que, além de namorarmos, começássemos a fazer quase tudo juntos. Éramos ambos veganxs, gostávamos das mesmas bandas, viajávamos juntos só para ver shows, e, quando possível, tentávamos organizar os shows no DF.

Infelizmente os interesses em comum não se refletiam em áreas que hoje julgo essenciais numa relação. D. era ciumenta, e eu era infiel. As crises de ciúme de ambos se tornaram uma constante junto com as discussões. Nada grave, discussões de casais e suas neuras/inseguranças (Quem é essa pessoa? Por que você mentiu sobre isso? Etc.). Acredito que não preciso me delongar nessa parte, que julgo pertencer apenas à intimidade do casal que um dia foi eu e D. Éramos ambos orgulhosos e impulsivos, cheios das certezas inabaláveis da juventude.

Depois de tantos atritos resolvemos terminar. Confesso que não me lembro quem teve a decisão no final de tudo. Hoje sei que passamos e muito da hora de terminar. Terminamos em Maio de 2012, estávamos ambos desgastados umx com x outrx. Porém, esse não era meu pensamento na época, e, magoado com o término, tentei voltar algumas vezes. Depois de vários “Eu não acredito mais em você” tive uma ideia a partir de dos e-mails pós término do que poderia fazer para tentar me redimir de ser um péssimo namorado.

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E assim o fiz. Não a perseguia, ao contrário do que foi colocado pelo texto do blog citado na introdução. Trocávamos e-mails em que mesclavamos uma tentativa de ser amigxs, com um desejo de voltar misturado com não querer perder contato com a pessoa que se gostava. Enfim, pintei a rua de frente à janela do quarto dela e deu certo. Voltamos em Agosto de 2012, 3 meses após o término. Porém a relação não durou muito mais do que um mês e terminamos novamente ainda mais magoados umx com outrx.

Uma semana após o término D. foi na porta do meu trabalho, na época na Asa Sul, pedir para voltarmos. Levou uma garrafa de cerveja uruguaia para me presentear. Era um gesto meigo após tantos meses de briga. Neguei o pedido de volta e subi novamente para o meu trabalho. Na saída do meu trabalho D. ainda estava lá me esperando, pediu para conversar e eu simplesmente a ignorei e segui meu caminho para a parada de ônibus, a fim de enfrentar uma viagem de pouco mais de uma hora rumo a minha casa.

D. ouviu um não de um péssimo namorado e se exaltou. Após ser ignorada D. me seguiu até a parada de ônibus e me empurrou a cerveja com tanta força que tive que desviar para não ser atingido pela garrafa que se espatifou em sua mão ao meu lado. Simplesmente surpreso e envergonhado com a situação, levantei para sair daquele lugar o quanto antes. Na época eu usava mullets de dreads que foram puxados quando dei as costas à D. seguido de gritos de “FALA NA MINHA CARA, NÃO ME IGNORA!”. Esses gritos só pararam quando D. percebeu que havia se cortado com a garrafa.

Neste momento apareceu um casal de amigxs, um deles trabalhava na mesma sala que eu. Assustados comigo coberto de sangue após verem D. empurrar a garrafa ao meu lado perguntaram se eu estava bem. Estranhamente fico calmo em situações extremas como essa. A única coisa que pensara na época foi que 1) D. tinha diabetes e aquele corte não fecharia sozinho 2) Eu não sei dirigir e não poderia levá-la ao hospital nem se quisesse. Após comprovar minha integridade física a meus amigos, pedi para que levassem-na no hospital.

Após esse acontecimento a minha relação com D. que não era das melhores só piorou. Eu tinha dois empregos, e na época em um deles D. era minha companheira de trabalho. Ao invés de evitarmos um ax outrx, fizemos o contrário. Como jovens imaturos nosso principal objetivo éramos não nos tornamos o ex-de-fulano, ou a “pessoa errada” e “culpada” pelo término. Começou então uma disputa infantil pelxs amigxs em comum. Começaram as fofocas, e acusações de péssimas pessoas e namoradxs que éramos. De barraco no facebook à acusações de traições, ao invés de irmos cada um para o seu canto e curarmos nossas mágoas, envolvíamos todxs. Mesmo quando o que fazíamos não tinha nenhuma relação umx com x outrx, acreditávamos que um só estava fazendo aquilo para nos atingir. Este então era o contexto em que ocorreu o 1º Brasília Queer Fest.

“Empapuçado ele sai, vai dar um rolê…”

O 1º Brasília Queer Fest foi inicialmente organizado pelo meu amigo Bruno Foca (Nerds Attack e gay assumido) em conjunto com a Mundano Produções, que envolve, entre outras pessoas a Bianca (ex-Bulimia) para trazer a banda Teu Pai Já Sabe?, a primeira banda conhecida de hardcore em que todos os integrantes são gays/bissexuais.

Como todo evento feito em Brasília, o Queer Fest não ficou isento de críticas, e tentamos na medida do possível fazer o nosso melhor com os recursos que tínhamos e sem esquecer a ética faça-você-mesmx do punk. Fui convidado incialmente para ajudar nos preparativos do fest (tendo inclusive ido falar ao vivo num programa de TV local, pois o Foca é tímido) e logo depois convidado para tocar com a minha banda, o ¿Que Pasa Cabrón?

Desde o ínicio do fest a intenção era convidar bandas de diversos estilos que gostávamos, além de tentar pautar, de forma lúdica, a questão do orgulho gay no meio underground. Era um dia de comemoração e festa. Uma banda que eu gostava muito ia tocar, e minha banda abriria o show para eles.

Conheço o Mamá, vocalista da finada banda Teu Pai Já Sabe, desde 2008. Ocasião em que ele me deu a primeira demo da banda. Desde então, fã de Limp Wrist que sou, pirei na banda. Quando aconteceu a oportunidade de fazer o show da banda no DF pensei que podia fazer mais que isso, e me ofereci para gravar o clipe de “Vá de bike” pra eles. Mamá topou, e passamos o final de semana gravando takes deles andando de bike pela cidade. O final do clipe seria com eles tocando ao vivo a última estrofe e o último refrão da música no show. Por isso então (e principalmente pelo belíssimo fotógrafo Álvaro Sassaki estar documentando a passagem da banda pelo Centro-Oeste) tenho o show gravado na integra e sem cortes, como vocês poderão ver ao final desse texto.

Durante o show eu e D. não interagimos formalmente. Não era o primeiro show que assistiamos juntxs, mas era o primeiro em que eu estava na organização. Evitei os locais que D. estava na medida do possível dentro de um lugar de 60m² com cerca de 300 pessoas. Nem sequer assisti ao show da banda em que ela fez uma participação, e a mesma também não viu o show da minha banda.

“É madrugada, parece estar tudo normal. Mas esse homem desperta pressentindo o mal…”

No dia seguinte ao show fui surpreendido com a ligação de uma amiga gritando: “POR QUE DIABOS VOCÊ DEU UM SOCO NA D. ??? VOCÊ TA DOIDO??” Como não tinha mais D. em nenhuma rede social não entendi do que minha amiga estava falando. Logo em seguida ao questionamento veio o print encaminhado por e-mail.

No dia 1º de Abril de 2013, no dia seguinte do show, D. postou uma foto na sua conta do instagram em que aparece sorrindo e com um olho roxo. Na legenda da foto o seguinte texto: “boom dia pra vc que vai começar um trampo novo com um roxo na cara pq vc é mina e tá curtindo demais o show, pq vc é ex namorada e tem espaço demais nesse lugar”. A legenda deixava entendido que eu era o culpado por aquilo. Depois de me explicar para a minha amiga, resolvi deixar aquilo quieto. Afinal já tinham se passado 6 meses desde que eu e D. tínhamos terminado, e eu já estava esgotado de disputar espaços com ela. Estava em outra, e como ela não citava meu nome, pressupus que num lugar em que cabiam 300 pessoas, qualquer um poderia te-la acertado, e não necessariamente de propósito.

Não sei se supus certo, ou errado. O caso é que no dia 06/04/2013 tive minha caixa de mensagens inundada de prints de pessoas me perguntando o que diabos teria acontecido durante o show. Eram prints de um texto que D. havia publicado em sua conta no facebook sobre o título de “Voltei para causar”. A postagem no facebook é o que abre o texto do blog “Eles Não Passarão”. Entre o conteúdo do texto estavam o meu nome citado, e a revolta de alguém que havia sido questionada sobre a acusação anterior. Mas mesmo assim nenhum detalhe do que, ou de como, teria acontecido no show. Após conversa com um amigo, que me aconselhou a não procurar o Estado, resolvi prosseguir com a minha política de “não devo, não temo…” e esperava que uma hora a mágoa passasse e esse mal entendido pudesse ser resolvido da melhor forma possível. Afinal era só uma acusação genérica.

Dia 13/04/2013 recebi na porta do meu trabalho um mandado de intimação expedida pela Doutora Maria Isabela da Silva a comparecer a uma audiência de justificação com base em depoimento de D. que alegava estar sendo “vítima de violência doméstica por parte do seu ex-namorado”. Além de me assustar bastante, a intimação, pela primeira vez, explicava do que eu estava sendo acusado. Segundo depoimento presente no mandado “no dia 31/03/2013, durante um show que a que ambos estavam presentes, ao autor dos fatos, após ser erguido pelos amigos dele, acertou as costas e o rosto da ofendida com o pé.” Eu estava sendo enquadrado pela Lei Maria da Penha por supostamente ter acertado alguém durante um stage dive.

“A justiça criminal é implácavel…”

Neste ponto é preciso fazer um adendo sobre a Lei Maria da Penha e sua medida protetiva. A Lei 11.340/2006, popularmente chamada de Lei Maria da Penha em homenagem à mulher de mesmo nome que se tornou ícone na luta para que agressores de mulheres sejam punidos, foi criada vista a demanda por legislação específica acerca de violência contra as mulheres. A Lei Maria da Penha talvez seja a maior conquista, em termos legais, do movimento feminista brasileiro no combate à violência masculinista. A Lei também prevê algumas medidas protetivas de urgência, que segundo a lei:

“Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

(…)

III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:

(…)

c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida”.

Porém como Carlos Eduardo Rios do Amaral, defensor público do Estado do Espírito Santo, atenta em seu artigo no site do JusBrail (http://por-leitores.jusbrasil.com.br/noticias/2583549/sobre-a-medida-protetiva-de-proibicao-de-frequentacao-de-determinado-lugar-na-lei-maria-da-penha) “a medida protetiva de urgência de proibição de freqüentação de determinados lugares, de natureza eminentemente cível, adotando a sistemática das cautelares do CPC de 1973, pode ser deferida em caráter preparatório, antes mesmo, assim, da deflagração da ação penal ou mesmo instauração de inquérito policial. Não estando ainda sujeita a prazo decadencial para sua manutenção no tempo, eis que destinada a assegurar os direitos humanos da mulher previstos na Lei Maria da Penha e ausente essa previsão legal restritiva.”

Em outras palavras, a medida protetiva de urgência é aplicada antes mesmo de ser aberto um inquérito policial. Ou seja, é uma medida que visa previnir que o possível agressor repita, e tenha sucesso em novas agressões a fim de intimidar a vítima. Não há inquérito policial, não há julgamento, há uma separação de corpos a fim que o Estado investigue o que aconteceu sem possíveis riscos para a vítima. Assim eu fui proibido de estar no mesmo lugar que D. no mínimo até o final do julgamento.

A audiência de justificação é, em termos toscos, uma audiência preliminar para apuração prévia dos fatos com a possibilidade de ouvir o suposto agressor, e estava marcada para o dia 10/06/2013, e meu depoimento na Delegacia da Mulher para o dia 12/06/2013. Até dia 10/06/2013 o defensor público me orientara a, segundo palavras dele, “esquecer as redes sociais, procurar outros lugares para ir, e, se eu fosse realmente inocente, tudo se resolveria.”

“E o boato que corre é que esse homem está com o seu nome lá na lista dos suspeitos…”

Nesta mesma época eu comecei a me relacionar afetivamente com uma pessoa de Curitiba, a empresa que eu trabalhava estava abrindo falência e não pagara seus funcionários, alguns dos meus “amigos” resolveram parar de aparecer publicamente do meu lado, e, mesmo quando eu tinha dinheiro, não podia frequentar determinados lugares já que teria que me retirar caso D. aparecesse. Resolvi me dedicar ao trabalho, e todo dinheiro que me sobrava eu gastava para ir ver a pessoa com quem eu me relacionava em Curitiba. Decidi que, já que o campo escolhido seria a justiça do Estado, jogaria com as regras dele. Em nenhuma vez perturbei D. ou tentei contato. Eu era inocente, sabia disso, e tinha como provar.

D. já não pensava assim. Certa vez, após ser marcado em post de um amigo em comum entre mim e D. ela publicou o seguinte texto, que durou pouco mais que algumas horas na sua conta no facebook.

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Eu recebi esse print dia 02/05/2013. Ainda não havia ocorrido a audiência de justificação, mas a medida protetiva já valia. Diante das acusações constantes de D. nas redes sociais eu nada podia fazer. Qualquer tipo de manifestação minha sobre o caso podia ser interpretada pelo juiz como violação da medida protetiva. E como já estava bastante dificil comprovar minha inocência, ser preso não era algo que estava em meus planos. Segui as regras da justiça do Estado e continuei apenas juntando provas da minha inocência.

No dia 10/06/2013 houve a audiência de justificação. Essa audiência serve para a Juiza averiguar se a medida protetiva tem cumprido seu papel, e se a vítima deseja seguir o processo criminal. É importante salientar que segundo a lei Maria da Penha a vítima só pode retirar a queixa em audiência, e, comprovado haver lesão corporal, o Ministério Público tem o dever de continuar a investigação, mesmo com a recusa da vítima em continuar o processo. D. pediu para depor sem a minha presença. O que sei sobre o que ela disse é o que consta em ata de audiência e o que o defensor público me disse. Segundo ele D. havia dito que não gostaria de seguir com o processo, mas que desejava manter a medida protetiva. Como D. não havia feito corpo delito, e eu ainda não havia sido ouvido, a juíza achou estranho e marcou uma nova audiência para após meu depoimento, afim de apurar melhor os fatos, que até agora, legalmente falando, não passava de uma acusação sem provas.

Dia 12/06/2013 eu fui intimado a depor na delegacia da mulher. Mesmo estando lá como possível réu, notei a diferença de entrar em uma delegacia na Ceilândia, e em uma no Plano Piloto. Apesar do “chá de cadeira”, ironicamente, tive por parte do aparelho repressor do estado o benefício da dúvida e o principio da inocência preservados. Levei todos os prints que comprovavam que eu não perseguia D., e sim o contrário, e o video do show que vocês podem assistir abaixo. Neste video, é possível verificar que D. recebe realmente uma pezada involuntária durante um stage dive. É possível perceber também que D. estava de costas e não vê que quem a acerta estava de calça, enquanto eu estava de bermuda e meião branco. Por um acaso do destino temos um flash exatamente 1 frame antes dela receber o pé no rosto. Enquanto estou no canto esquerdo do video. É possível ver apenas meu boné, mas é possível identificar que não sou eu o autor do acidente. Aliás, eu nem sequer estava envolvido.

A outra audiência havia sido marcada para o dia 04/09/2013. Mais uma vez não participei do depoimento de D. mas o defensor público havia me dito que ela decidira não continuar o processo, e com base no laudo da polícia cívil sobre o video do show, o Ministério Público havia decidido que não havia necessidade de continuar o processo e o mesmo foi arquivado. Como em TODAS as audiências foi assinada uma ata de audiência em que constava o que tinha sido dito na mesma, a Doutora Maria Isabela da Silva nos explicou que a qualquer momento o processo poderia ser “desarquivado” caso a vítima assim o solicitasse, se em algum momento eu decidisse a perturbar. Estava enfim, depois de quase um ano, provadamente inocente. Ao contrário do que possa sugerir, não é preciso existir um processo tramitado e julgado para tanto. A justiça penal se baseia no princípio de que as pessoas são inocentes até que se provem o contrário. Convivendo desde os 6 anos de idade na periferia do Distrito Federal eu sabia que não era bem assim que o Estado costumava agir com aqueles de pele escura e bairros afastados do centro. Ironicamente, o aparelho estatal que é opressor em sua origem, foi o lugar em quem pude ter espaço para uma ampla e, na medida do possível, neutra defesa.

Feliz que estava, fiz o seguinte post na minha conta no Facebook, num tom que hoje considero um tanto inadequado para o tema:

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Que foi logo seguido por esse post na conta de D. junto com os comentários no post.

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Como sugerido pelo defensor público que acompanhou meu caso, guardei os print screens. Decidi que não era mais da minha alçada julgar minha defesa. Depois de muito pensar sobre o assunto entrei com o processo por danos morais no juízado civil no dia 20/11/2013. Eu achava que esse tipo de acusação acabaria após o meu julgamento e eu finalmente estaria em paz. Já que a justiça estatal tinha sido o terreno escolhido para tanto, achava que, depois de D. ver que não havia sido eu quem a acertara tudo passaria. Não passou.

“Mesmo longe do sistema carcerário te chamarão para sempre de ex-presidiário…”

Pode soar como vitimismo, mas, se puder, imagine: Você é pardo, morador da periferia do Distrito Federal. Você não é pobre. Nunca lhe faltou nada em termos básicos de sobrevivência. Mas você também não é rico, você não tem advogado próprio e não entende nada de Direito. Seus últimos dois anos haviam sido dedicados a uma pessoa e a uma cena musical. De repente a pessoa com quem você havia convivido, magoada por um relacionamento extremamente nocivo e prejudicial resolve te acusar de algo que você não fez. Várias pessoas dessa cena musical resolvem virar as costas pra você. Afinal, não pega bem andar com alguém acusado de algo tão grave. Você é obrigado a passar por um processo judicial, tem que explicar pro seu chefe porque você vai faltar mais um dia de trabalho. Tem que explicar para sua mãe, sobrevivente de um marido violento, que você ta sendo acusado de algo tão escuso para a família. Você tem que aprender sobre regras e funcionamentos do Direito com amigos, internet, e visitando a defensoria pública pra saber se, e como você poderá ter direito a ampla defesa. No meio disso tudo você é desligado novamente da universidade, afinal entre a turbulência trabalho, família, nova namorada, explicar sua inocência para as pessoas, a faculdade acabou sendo deixada de lado. Você não tem carro e vai a pé para o fórum numa cidade que o transporte público não funciona. Toda pessoa nova que você conhece, ou você tem que se explicar, ou ela misteriosamente para de falar com você. Pessoas que eu nem sequer conhecia vinham me acusar de agressor.

D. havia feito ínumeros posts na sua conta no facebook. Seu texto foi compartilhado por alguns coletivos feministas. Amigos e amigas minhas eram cobrados o tempo inteiro por falarem comigo, aparecerem em fotos comigo, ou mesmo serem minhas amigas em alguma rede social. E agora, por último, a criação de um blog com fotos minhas, local onde eu moro e inúmeras inverdades. Nunca sequer fui em alguma marcha da maconha, apesar de ser a favor da descriminalização da mesma. Participei do MPL entre 2005 a 2010, nunca de forma muito ativa, tendo sido expulso de uma reunião em Julho de 2013 por uma amiga de D. Você passa “o resto da madrugada sem dormir, pensando como sair dessa situação, e com má reputação, ninguém confia não” sua vida está pra sempre danificada. Se conto essas coisas não é pra me fazer de vítima, mas demonstrar o contexto que eu me encontrava ao final de 2013 e explicar o que me levou a iniciar o processo por danos morais. Se você acha exagero:

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esse wpp foi recebido minutos após publicarem uma foto do meu lado. Nesse eu sou impedido de participar de um grupo de humor no facebook!

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Aqui eu sou impedido de ir a um show.

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E nesse ultimo, uma pessoa branca, moradora de bairro nobre em brasília me compara com um nazi!

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Ninguém é poupado. Se é meu amigo em alguma rede social, escória da humanidade:

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Essas são apenas algumas das inúmeras vezes que eu, ou meus amigos e amigas fomos questionados por um crime que comprovadamente eu não havia cometido.

Abri um processo por danos morais no juizado especial cívil. Orientado pelo defensor (sim, eu ainda não tinha advogado) que abria o processo e me disse, “Quanto vale um amigo?” pedi o máximo possível no juízado especial, 10 salários mínimos. NUNCA TIVE O MÍNIMO INTERESSE NO DINHEIRO DE D., AO CONTRÁRIO DO QUE COLOCA O RELATO DO BLOG. Minha intenção era pedir na audiência de conciliação uma retratação pública de D. que já tinha feito pelo menos 4 posts acusatórios nas redes sociais, mesmo quando a medida protetiva proibia o contato entre as partes. E muito mais me interessava meu nome limpo do que qualquer dinheiro. Porém, na area cível não é possível pedir este tipo de acordo ao abrir o processo (durante a audiência de conciliação sim), para tanto seria necessário entrar com um processo na área penal, o que na época não julguei necessário.

Nesse meio tempo apareceu uma proposta de emprego irrecusável em Curitiba. Como eu já me relacionava com uma pessoa daqui há quase um ano, resolvi me mudar. Sair de Brasília talvez ajudasse. Já não participava mais dos mesmos rolês que D., e quase não tinhamos mais amigos em comum. Assim iniciei 2014 morando em outra cidade.

“Amanhece mais um dia e tudo é exatamente igual”

Dia 19/05/2014 foi quando houve a audiência de conciliação por danos morais. Era a primeira vez que eu e D. falariamos sobre o assunto frente a frente. A primeira vez que ela poderia ouvir da minha boca que não tinha sido eu a acerta-la no dia do show, e talvez assim nos resolvermos. Contei minha história, apresentei os diversos prints, screenshots do video, além do video na integra num pen drive. Tudo isso está disponível para ambas as partes no processo. Basta pedi-lo com seu advogado. Inclusive, as fotos presentes no blog são as mesmas que contam nos autos do processo como prova de que eu a acertei de alguma forma. Mesmo não tendo nenhuma foto sequer que mostre algo próximo do meu pé a acertar nas costas e o rosto.

Segundo as regras do juízado civil, a parte que acusa começa a sua exposição dos fatos, e a parte acusada fala logo em seguida. Após explanar a mesma história que contei até aqui, a única coisa que D. e seu advogado completaram foi: “Não tenho muito a acrescentar, a história aconteceu mais ou menos assim mesmo”. Logo em seguida, segundo as regras do tribunal, a parte acusada começa com a contraproposta, que segundo palavras do advogado de D. “Não precisava ser resolvida financeiramente, foi apenas uma briga de namorado que tomou conta da internet.”

Nesse momento fiquei surpreso. Acredito ser bastante problemático atestar uma violência de gênero, e depois diminuí-la a uma “briga de namorados que tomou a internet”. A justiça foi acionada, um inquérito foi aberto, policiais, juízes, advogados, promotores e defensores públicos foram acionados afim de suprir a demanda de uma mulher que havia sido agredida. Então todas essas pessoas e dinheiro público foram gastos afim de resolver “uma briga de namorados”?. Um dos únicos aparatos jurídicos/legais de proteção da mulher foi gasto/usado pra nada. Agora eu tinha um advogado, e precisaria pagar pelo menos seus honorários. Dissemos que não era bem assim, e o conciliador fez sua parte, registrou em ata que apenas que as partes não chegaram a um acordo.

Tivemos uma segunda audiência em que D. chamou algumas testemunhas. Todas elas haviam tido desavenças anteriores comigo. Brigas imbecis de convivência em grupo que não dizem respeito a essa história. Mesmo assim todas elas viram uma boa oportunidade para resolver suas desavenças por lá. Mas sob juramento, todas elas confirmaram não terem visto a suposta agressão. Disseram apenas que “só podia ser ele, ja que ele tava lá e tal…” Hoje o processo encontra-se em instância superior. Dois juízes brigam para ver quem irá dar o veredicto, então uma instância superior decidirá qual dos dois irá julga-lo. Achei que até o final desse julgamento poderia ter essa história finalmente resolvida.

“…quer provar a si mesmo que realmente mudou, que se recuperou e quer viver em paz…”

No dia 04/10/2014 aconteceu o show do Bandanos, banda clássica de crossover de SP. O show era organizado pelo Brazlândia Underground, que tem entre seus membros fundadores o ex-baterista da finada banda ¿Que Pasa Cabrón?, banda que montei com alguns amigos em meados de 2008. Quando o show começou a ser organizado, foi dada a idéia da minha banda fazer um show de reunião. O Bandanos era uma banda amiga da qual sempre tivemos influência, e seria sensacional abrir um show pros caras. Seria…

No dia 01/10/2014, exatamente às 00:20 recebi pela primeira vez o link do blog Não Passarão.

Já havia se passado 1 ano e 6 meses, dois processos judiciais, eu havia me mudado de cidade, D. tinha acesso ao video do show, mas mesmo assim a insistência em me acusar de qualquer coisa persistia. Resolvi ignorar e continuar só tratando do assunto através da justiça. Algumas pessoas me procuraram, outras apenas postaram o blog enquanto pediam desculpas inbox, outras até me excluiram, e depois pediram desculpas dizendo que “estavam sendo pressionadas”. O importante era, Roberto Lagarto era um câncer que merecia ser combatido. Era como se eu fosse a personificação do sistema, e acabando comigo, as pessoas estariam livres. Não importava se eu era inocente, ou culpado. Não importava sequer que eu ja tinha passado quase dois anos com isso nas costas. Até um criminoso julgado e comprovadamente culpado já estaria livre. Mas não era o suficiente pra mim, eu merecia pagar. Então uma hora antes de entrar no avião eu recebo a seguinte mensagem de um dos organizadores do show

show

Minha banda não tocaria no show. Não se tratava apenas de não tocar. Se tratava de ser sumariamente acusado por algo que eu não fiz. Se tratava agora de pagar por isso, sofrer as consequências de um crime que não cometi. Eu estava arrasado de vez. Não bastava eu nunca mais nem estar no mesmo lugar que D., não bastava em nem sequer estar na mesma cidade. O peso da pena sempre foi mais pesada desse muro pra cá, não importava. Tentei várias vezes após o término com D. resolver as coisas entre a gente. Não tenho a mínima ideia de porquê ela fez isso. Não acho que ela tenha mentido propositalmente, nem que seja maluca. Achava apenas que diante daquele contexto destrutivo em que nos encontrávamos pós-término era muito fácil um achar que umx estava provocando x outrx. Relendo conversas, prints e e-mails antigos para escrever esse relato eu percebi o quanto eu tinha uma postura totalmente inadequada para lidar com a situação do término. Talvez isso tenha sido o motivo principal da sustentação e perduração da idéia de que eu a teria agredido. Ao invés de respeitar o espaço e o tempo que as mágoas precisam, tinha a impaciência da juventude e queria resolver as coisas sempre no momento. Se aprendi algo com esse episódio foi a pensar duas vezes antes de falar e agir, entender quando minha presença incomoda, tentar preservar a pessoa com a qual estou me relacionando e a mim mesmo. Mesmo depois de provado que não havia acontecido agressão por minha parte no dia do show, houve a tentativa de criar uma ideia de que eu era agressivo não só durante todo o período do relacionamento, como também nas minhas relações anteriores. Minhas relações anteriores foram contactadas por D. numa tentativa infrutífera de resgatar um inexistente histórico de agressão. Inclusive, uma das contactadas enviou uma carta que refuta a ideia de que eu havia agredido ex-namoradas, como D. já havia me acusado anteriormente, e esta mesma carta consta nos processos judiciais como prova.

Mas depois de provas em video, inúmeras tentativas de resolver esse mal entendido, dois processos, várias audiências, o que valia ainda era que para eles eu ainda era culpado e ponto final. Sem menção honrosa, sem massagem. Assim era. Deixei essa história de lado por quase 2 anos. Toda vez que conheço uma pessoa nova sou obrigado a me explicar pra ela. Vez ou outra pessoas de qualquer lugar do Brasil me contatam pra saber “Que história é essa?”. Bem essa é a minha história. A história de como eu sou inocente, e como ela teve essa proporção. E também é a ultima vez que falarei desse assunto fora de um juízado. Abaixo está o vídeo do show completo. Estou de bermuda e meia como pode se ver no minuto 31:04 enquanto abraço o vocalista. O momento em que D. é acertada pelo stage-dive de uma pessoa usando calça jeans é entre os minutos 30:49 e 30:51. Nesse momento estou do outro lado como pode ser ser visto no minuto 30:47 e na sequência.

Att,

Roberto Lagarto

Ps.: Foi colocado de forma criminosa um e-mail completamente fora de contexto na versão dessa história do blog. Explico: Sim, aquele e-mail é meu, e fui eu quem escrevi. Como dito anteriormente, ele está fora de contexto. Estavamos conversando sobre um caso específico de assédio. Os ânimos estavam exaltados, e usavamos um conceito de “agressor” muito mais amplo. O machismo, assim como o racismo e a heteronormatividade são estruturas de poder que independem das vontades e intenções dos participantes. Pessoas brancas sempre terão um peso maior na dissiparidade de poder do que pessoas negras. Independem delas os privilégios que elas possuem. Mesmo eu, com uma classe social melhor, serei preferido a ser seguido numa loja do que alguém branco. Logo, quando falo que já estive na posição de agressor, eu falava que já estive em situações de privilégio em que na hora, ou não as repensei, ou as ignorei e aceitei meu privilégio, me tornando conivente com a estrutura de poder, e indiretamente um agressor. Obviamente numa lista de e-mails não colocamos todas essas informações, já que ela já estaria implicitas no contexto. Mas mesmo assim, não partilho mais das ideias que escrevi 4 anos atrás. Prefiro o pensamento da feminista negra, bell hooks, “how do we hold people accountable for wrongdoing and yet at the same time remain in touch with their humanity enough to believe in their capacity to be transformed?” (Numa tradução livre: Como nós podemos responsabilizar as pessoas por suas atitudes erradas, mas mesmo assim, nos mantermos em contato com sua humanidade o suficiente para acreditarmos na sua capacidade de se transformar?)

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